há uns tempos que se deita mais cedo. adormece no sofá, em frente da televisão, e fica com dores no pescoço. nada disto lhe acontecia. alias, mesmo de tarde, o sono envolve-o de repente. "estavas a cabecear", diz-lhe a mulher. "a cabeça pendia-te ou andava de um lado para o outro." sorriam. "é a idade, que se lhe há-de fazer?"
também costumava ler um pouco, antes de a mulher se deitar. depois, conversavam, recordavam coisas antigas e riam-se. "éramos muito novos, quando nos conhecemos, e só queríamos estar um com o outro." agora, quando ela chega à cama, ele, muitas vezes, já está a dormir. ela não faz o mínimo ruído. "a que horas te vieste deitar, ontem?", pergunta ele. "não dei por te deitares."
aquele intervalo que vai do esticar-se até à chegada do sono preenche-o, agora, com lembranças, nem todas agradáveis. ela percebe. "estás a recordar-te de alguma coisa que eu não sei." há anos que não dão um beijo antes de adormecerem. passou. não é o cansaço da presença, nada disso: é a vida. a vida transforma as emoções e acaba com os pequenos prazeres. ah!, como gostava de o beijar!, como gostava de a beijar. a primeira vez que se beijaram, não foi a primeira vez que a beijou, foi a primeira vez que se beijaram, porque o beijo foi recíproco e feliz, natural e sem surpresa, estavam na rua do ouro e caminhavam para o terreiro do paço. "lembras-te?", pergunta ela. estão deitados e de mãos dadas. também não davam as mãos há muito tempo, como estas coisas se desvanecem e perdem. "então não havia de me lembrar? a tua boca era húmida e fresca." ela virou levemente a cabeça e fitou-o. "já não é, pois não?"
antes de esta soneira lhe dar, contavam um ao outro os episódios do dia. ela, as histórias que ouvira na praça, as leves conversas avulsas com as vizinhas, as intrigas, as perplexidades. ele, o que fizera no escritório, as ressacas do almeida, a carranca do encarregado. não acontecia nada ao almeida porque era um excelente correspondente em inglês e alemão, e todos sentiam compaixão pelo que lhe acontecera: a mulher trocara-o por outro. muitos casais separados, sobretudo depois da Revolução, parecia que um vento de loucura varrera as famílias. "o nosso casamento foi o único que resistiu", diz ele. um grande silêncio. ambos mergulharam em fundos pensamentos, sabe-se lá o que ocultam, sabe-se lá o que nunca disseram um ao outro; sabe-se lá.
não tinham filhos. nunca tiveram filhos por deliberação própria. "devíamos tê-los tido", costumava dizer ela. "sobretudo uma ou duas raparigas. faziam-me companhia e sempre conversávamos de coisas de mulheres. às vezes, estou horas seguidas sem conversar. estás a ler 'a bola' ou a dormitar." di-lo com um leve tom de recriminação. di-lo com um distante tom de ternura. olha-o.
costumavam ir ao cinema. nessa época, os cinemas faziam descontos às segundas-feiras, e eles aproveitavam. ele fora atingido por um despedimento colectivo, andara desorientado, começarara a beber demais, até que ela decidira ter com ele uma longa e grave conversa. nessa conversa relembrara que dias muito difíceis haviam enfrentado os dois; ela chegara a trabalhar a dias; ainda bem que não tiveram filhos senão era uma carga de trabalhos; ele não podia ir-se abaixo; noutros tempos estivera preso por política; nada abalara essa força interior que animara os dois. agarraram-se um ao outro, lágrimas nos olhos. "não te esqueças nunca: tu és o meu rochedo", dissera ela. e ele agarrara-se-lhe, também apoiado nessa coragem sem nome, protegido pela energia dela, até pelo seu sorriso molhado.
agora, permaneciam na cama até tarde. quando ele trabalhava de correspondente de línguas, ela erguia-se muito cedo, fazia-lhe a torrada com o pão de centeio do dia anterior, ele gostava muito de pão de centeio, uma chávena grande de café com leite, ala que se faz tarde! agora, preguiçavam até para lá das 11; era ele que se levantava antes dela; ia para a sala, ligava a televisão, ficava por ali. "tens de te animar", dizia ela. "não podes ficar aí, horas e horas, diante da televisão. vamos passear. talvez até devesses arranjar um biscate, nem toda a gente sabe inglês e alemão."
"estás acordada?" "estava quase a dormir." lembrou-se, sabe-se lá porquê!?, da feira da luz, aonde costumavam ir, todos os anos, ela ia rezar à igreja, ele passeava pelos expositores, chegou a comprar um lote de facas muito boas, já não há desse material, hoje é tudo vigarice. "temos de ir, este ano, à feira da luz. devíamos retomar algumas das nossas coisas antigas." "talvez", diz ela.
baptista-bastos, montepio #63 - outono 2009
escrito por by joão martinho Email post
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