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disseram-me que ele se costumava atrasar muito e que um almoço com ele nunca acabava antes de depois da hora de jantar. disseram-me que ele gostava muito de falar e de comer, embora a sofreguidão de falar o fizesse, muitas vezes, abdicar de comer. nunca ligo muito ao que as pessoas dizem de outras pessoas porque as pessoas dizem verdades e mentiras - as pessoas só são verdadeiras quando falam de si; fingem é nas humildades e nas sobrancerias.
esforcei-me por chegar lá a horas e constatei que afinal as pessoas tinham razão quando falavam da sua falta de pontualidade; e eu que odeio esperar. para a espera, optei por um vinho barato com nome de caro, porque o dinheiro é pouco mas gosto de causar uma boa primeira impressão. claro que não foi fácil, já que ele demorou meia garrafa a chegar e eu já balanceava ao ritmo do estômago em jejum. fiquei nervoso por não conseguir controlar o meu corpo nem ter apetite para comer; ainda mais fiquei quando ele começou a falar. sempre tive problemas de concentração e não costumo demorar mais de dez minutos de conversa improfícua para começar pensar em nada. sempre que isto acontecia, entrava em pânico e tentava disfarçar toda esta ansiedade; espero que não tenha sido em vão. pedi a sobremesa sem ter tocado no primeiro prato e ele nem notou; fui à casa de banho lavar a cara com água fria e acho que ele continuou a falar.
gosto de sentir a água fria disparar-se contra a minha cara - costumo dizer-me 'acorda para a vida, pá!'. senti-me uma pessoa melhor e voltei para a mesa, onde o gelado de menta e chocolate começava a descongelar. melhor, gosto mais dos gelados quando já não estão tão gelados. gosto de chocolate e mentol e ao comer o gelado pensava que era mesmo disso que precisava: açúcar com fartura pela goela abaixo. peguei no guardanapo e rabisquei umas palavras, para ver se o corre-corre cerebral se acalmava um pouco. e resultou. o açúcar é o estimulante que melhor se dá com a minha actividade cerebral. funcionam tão bem que às vezes até dá faísca e trovão e muita chuva de coisas; o que eu costumo chamar de 'nada'.
nada é pouco menos de tudo o que eu percebi do que ele me disse. fala muito, de facto, e ainda não tinha passado dos aperitivos que até tinham muito bom aspecto, por sinal. tão bom aspecto que recuperei o meu apetite e pedi igual para mim - será que era por causa disto que as pessoas diziam que com ele o almoço engole o jantar? sorri ao pensar no 'vê se comes isso antes que fique frio, que depois não presta' que a minha mãe tantas vezes me dedicou e, aconselhado pelo empregado, pedi um entrecosto argentino - sim, como se precisasse da opinião dele para me inclinar para o entrecosto argentino!
era já de noite e eu almoçava ainda. sentia-me bem, ainda assim, porque ao fim ao cabo, ele ainda nem o tinha começado. nunca tinha conhecido ninguém com tanta vontade de falar e eu nunca tinha sentido tão pouca vontade de ouvir. senti-me uma má pessoa, mas continuei a comer - afinal era ele que pagava. senti-me outra vez uma má pessoa, afinal ele estava a pagar-me para o ouvir e eu nem isso conseguia dar-lhe - os meus ouvidos, absorvidos na orgia de sentidos que a comida me proporcionava. o restaurante é muito bom e fiquei com vontade de voltar lá em breve. ele ficou com vontade de repetir e convidou-me para almoçar com ele outra vez na semana seguinte. eu aceitei e desde aí que almoçamos juntos uma vez por semana.
aprendi a comer e a beber; especialmente beber - que descobri que é a sua grande especialidade. com o tempo, aprendi a ouvi-lo, também. meia dúzia de anos depois, morreu sozinho num hospital, depois de muitos meses sem saber que dia seria o último; sem poder desfrutar do fim. eu era a única pessoa que o visitava e um dia ele pediu-me para escrever a biografia dele, se algum dia viesse a ser famoso. nunca o foi, mas eu escrevi a biografia dele na mesma e publiquei-a. recebi muitos elogios e a crítica dizia toda que era o romance de uma vida extraordinária, apesar de eu insistir que era apenas uma biografia de alguém que gritou para ser ouvido, e foi sempre sufocado por pessoas ordinárias.
com o dinheiro que ganhei com o livro, todas as semanas vou almoçar com ele. ele continua a falar muito e eu todas as semanas o ouço melhor. a única diferença é que agora sou eu que pago.
disseram-me que ele se costumava atrasar muito e que um almoço com ele nunca acabava antes de depois da hora de jantar. disseram-me que ele gostava muito de falar e de comer, embora a sofreguidão de falar o fizesse, muitas vezes, abdicar de comer. nunca ligo muito ao que as pessoas dizem de outras pessoas porque as pessoas dizem verdades e mentiras - as pessoas só são verdadeiras quando falam de si; fingem é nas humildades e nas sobrancerias.
esforcei-me por chegar lá a horas e constatei que afinal as pessoas tinham razão quando falavam da sua falta de pontualidade; e eu que odeio esperar. para a espera, optei por um vinho barato com nome de caro, porque o dinheiro é pouco mas gosto de causar uma boa primeira impressão. claro que não foi fácil, já que ele demorou meia garrafa a chegar e eu já balanceava ao ritmo do estômago em jejum. fiquei nervoso por não conseguir controlar o meu corpo nem ter apetite para comer; ainda mais fiquei quando ele começou a falar. sempre tive problemas de concentração e não costumo demorar mais de dez minutos de conversa improfícua para começar pensar em nada. sempre que isto acontecia, entrava em pânico e tentava disfarçar toda esta ansiedade; espero que não tenha sido em vão. pedi a sobremesa sem ter tocado no primeiro prato e ele nem notou; fui à casa de banho lavar a cara com água fria e acho que ele continuou a falar.
gosto de sentir a água fria disparar-se contra a minha cara - costumo dizer-me 'acorda para a vida, pá!'. senti-me uma pessoa melhor e voltei para a mesa, onde o gelado de menta e chocolate começava a descongelar. melhor, gosto mais dos gelados quando já não estão tão gelados. gosto de chocolate e mentol e ao comer o gelado pensava que era mesmo disso que precisava: açúcar com fartura pela goela abaixo. peguei no guardanapo e rabisquei umas palavras, para ver se o corre-corre cerebral se acalmava um pouco. e resultou. o açúcar é o estimulante que melhor se dá com a minha actividade cerebral. funcionam tão bem que às vezes até dá faísca e trovão e muita chuva de coisas; o que eu costumo chamar de 'nada'.
nada é pouco menos de tudo o que eu percebi do que ele me disse. fala muito, de facto, e ainda não tinha passado dos aperitivos que até tinham muito bom aspecto, por sinal. tão bom aspecto que recuperei o meu apetite e pedi igual para mim - será que era por causa disto que as pessoas diziam que com ele o almoço engole o jantar? sorri ao pensar no 'vê se comes isso antes que fique frio, que depois não presta' que a minha mãe tantas vezes me dedicou e, aconselhado pelo empregado, pedi um entrecosto argentino - sim, como se precisasse da opinião dele para me inclinar para o entrecosto argentino!
era já de noite e eu almoçava ainda. sentia-me bem, ainda assim, porque ao fim ao cabo, ele ainda nem o tinha começado. nunca tinha conhecido ninguém com tanta vontade de falar e eu nunca tinha sentido tão pouca vontade de ouvir. senti-me uma má pessoa, mas continuei a comer - afinal era ele que pagava. senti-me outra vez uma má pessoa, afinal ele estava a pagar-me para o ouvir e eu nem isso conseguia dar-lhe - os meus ouvidos, absorvidos na orgia de sentidos que a comida me proporcionava. o restaurante é muito bom e fiquei com vontade de voltar lá em breve. ele ficou com vontade de repetir e convidou-me para almoçar com ele outra vez na semana seguinte. eu aceitei e desde aí que almoçamos juntos uma vez por semana.
aprendi a comer e a beber; especialmente beber - que descobri que é a sua grande especialidade. com o tempo, aprendi a ouvi-lo, também. meia dúzia de anos depois, morreu sozinho num hospital, depois de muitos meses sem saber que dia seria o último; sem poder desfrutar do fim. eu era a única pessoa que o visitava e um dia ele pediu-me para escrever a biografia dele, se algum dia viesse a ser famoso. nunca o foi, mas eu escrevi a biografia dele na mesma e publiquei-a. recebi muitos elogios e a crítica dizia toda que era o romance de uma vida extraordinária, apesar de eu insistir que era apenas uma biografia de alguém que gritou para ser ouvido, e foi sempre sufocado por pessoas ordinárias.
com o dinheiro que ganhei com o livro, todas as semanas vou almoçar com ele. ele continua a falar muito e eu todas as semanas o ouço melhor. a única diferença é que agora sou eu que pago.
escrito por by joão martinho Email post
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