Tom desconhece o significado de comportamento em sociedade. Nunca se preocupou muito com isso, aliás. A agenda do último terço da sua vida tinha sido: manhãs a dormir, as tardes no sofá e as noites a fumar, beber e ouvir música. Nos intervalos dos talkshows da tarde aproveitava para ir até à mercearia duas portas abaixo da sua, cumprimentava a dona Ann, pegava no saco verde que ela lhe preparava todos os dias, pagava e voltava a casa. Na cozinha, abria o saco, tirava a garrafa de whisky e enchia o cantil. Depois, aquecia o que a dona Ann tinha cozinhado para o almoço e voltava para a sala. De vez em quando lia qualquer coisa e escrevia mais uma linha ou outra do romance que estava a tentar terminar há quase dez anos. Mas por cada linha que escrevia, riscava duas e o caixote dos papéis estava sempre cheio. E porque nada lhe corria bem, voltava à cozinha e enchia de novo o cantil. Aproveitava a ocasião para encher também um copo que bebia de um só trago. Acendia um cigarro e levava a mão esquerda ao bolso das calças. Escolhia um cd e começava a andar de um lado para o outro. Entre as passas no cigarro, despenteava-se e coçava o pescoço e queixo. E ia escrevendo assim, cada bocado de estória ao sabor de uma voz e estilo diferente. E a estória, essa, não existia para além da imaginação de Tom. E as linhas que tinha escrito diziam sempre o mesmo, em línguas de sofrimento diferentes: 'choro-te; amo-te'.
escrito por by joão martinho Email post
« Home | posts do antigamente #34 » //-->
Post a comment :